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A história da TV Pinel e o desmonte da saúde mental no Brasil

por Arthur Coutinho Goncalves Bomfim

30 de novembro de 2021




Lições de uma TV comunitária e sua luta por liberdade, democracia, saúde e arte


Comunicar sobre saúde mental no Brasil é essencial para o reconhecimento da importância desse tema para a saúde pública da população. Jornalistas têm um papel fundamental em reportar, mostrar e denunciar as decisões que estão sendo tomadas nesse campo político e social, sobretudo, neste momento em que o país passa por um verdadeiro desmonte entre a saúde pública e mental. A Reforma Psiquiátrica junto às conquistas alcançadas com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da Constituinte de 1988 e dos avanços trazidos pelos governos progressistas estão conectados e, agora, sofrem juntos um processo de aniquilação por governos de extrema direita no país.


Recordar a importância de alguns movimentos que estiveram à frente pelos direitos populares e pelo acesso à saúde é um ensinamento de mobilização e resistência em tempos de duros retrocessos políticos. Esse ensinamento pode partir de onde menos se espera, como uma TV comunitária que trazia pessoas excluídas pela sociedade para os sets de filmagem e para as suas telas.


Elizabeth Costa no primeiro programa da TV Pinel. (Fonte: Reprodução)

– O que que vocês acham que tem debaixo do tapete de um hospício?

– É louco varrido, entendeu?


De uma anedota inocente e de um encontro entre pacientes e funcionários de uma instituição psiquiátrica, surgia, em 1996, uma das experiências mais transformadoras da história da Reforma Psiquiátrica no Brasil: a TV Pinel. A piada acima era de Elizabeth Costa, uma usuária do Instituto Philippe Pinel (IPP), localizado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Foi ela e Maycon Santos, outro usuário do IPP, que abriram o primeiro programa de uma TV comunitária que tinha como objetivo romper os preconceitos e as barreiras contra a loucura e acabar com a lógica do manicômio e das desigualdades sociais promovidas por essas instituições. Uma luta que é referência, hoje, para um Brasil que vê suas políticas de saúde mental sendo, a cada dia, mais sucateadas.


Maycon Santos, o repórter da TV Pinel, no primeiro programa exibido em 1996. (Fonte: Reprodução)

A TV Pinel nasceu graças à iniciativa de um médico e ao apoio integral de uma psicóloga. Ricardo Peret, psiquiatra e então diretor do Instituto Philippe Pinel, e Doralice Araújo, que trabalhava com crianças que viviam com autismo e outros transtornos mentais por meio da fotografia na instituição, foram os idealizadores e as pontes para que Valter Filé e Noale Toja, além de muitos outros profissionais, também ajudassem a erguer o novo “canal”. Noale e Filé vinham da TV Maxambomba, criada em 1986, em Nova Iguaçu, uma tevê popular conhecida por desenvolver diversas atividades entre os municípios da Baixada Fluminense, no Rio, e por dar voz aos moradores das periferias que são historicamente excluídos de direitos básicos pelo Estado.




Noale Toja entrevistando em evento pela Luta Antimanicomial, em 1997. (Fonte: Reprodução)

“Eu nunca havia entrado num hospital psiquiátrico e você vai com o preconceito e a imagem de quem mora no Rio tem da Baixada, de desgraça, tragédia. Entrei no hospital e senti que a Pinel foi o lugar que mais me enriqueceu depois da Maxambomba”, disse Valter Filé, um dos responsáveis por levar a prática de produção da TV popular de Nova Iguaçu ao modelo de atuação da Pinel. Uma das propostas com a criação da TV “louca”, como lembrou Filé, era trazer a capacidade do riso às pessoas e evidenciar que a loucura é uma questão social e não apenas psiquiátrica. “Entendemos que, quando ainda existe a capacidade do riso, é porque ainda existe uma fortaleza, ainda existe um ser humano ali”, disse. Foi a partir dessas ideias que a equipe da Pinel começou seus trabalhos com a cumplicidade de muitas pessoas, como o Maycon Santos, um usuário que trabalhou como o repórter da TV Pinel. Em suas diversas entrevistas nas ruas e em eventos de saúde mental pelo Brasil, ele ajudava a desmistificar a imagem sobre a loucura e a apresentar as atividades da TV “endoidada”.


A partir do vídeo, os usuários da TV Pinel viam a oportunidade de serem incluídos, ouvidos e de construírem suas próprias narrativas, um trabalho que rompia preconceitos, transformava a autoestima e gerava autonomia para aquelas pessoas. O processo criativo dos usuários da Pinel, apesar de contar com roteiros, tinha na improvisação e no humor a sua principal forma de produção de cada programa, entrevista, esquete, série, perfis. “Isso me ajudou a pensar muito sobre a relação dos padrões reproduzidos na mídia. Que padrões são esses e por que a gente se aprisiona neles?”, disse Noale Toja, que atuou na coordenação da equipe da Pinel.


Noale, durante anos de dedicação ao projeto, acompanhou a produção dos vídeos, o desenvolvimento da Pinel e viu crescer sua importância na vida de muitos usuários e de suas famílias. Ela também presenciou os primeiros problemas criados após a municipalização do IPP, que passou a ser chamado de Instituto Municipal Philippe Pinel. A nova gestão municipal carioca deixou a instituição, antes gerida pelo Ministério da Saúde, com problemas para conseguir novos recursos a cada ano, o que levou ao fim das atividades da TV Pinel por volta de 2014. Um dos modelos da Reforma Psiquiátrica Brasileira responsável por transformar a vida de muitas pessoas chegava ao fim, e o motivo principal para esse sucateamento foi a falta de interesse político da então secretaria de saúde do município.



Fonte: Reprodução

Essa história, no entanto, não é isolada. O Brasil vive hoje uma escassez de recursos para saúde mental, e a história da TV Pinel pode ajudar a refletir como o desmantelamento de políticas de saúde mental desenvolvidas pela Reforma Psiquiátrica pode afetar a vida de muitas pessoas por meio de uma possível volta do antigo modelo manicomial. “Um pouco antes dela fechar, a gente já percebia os reflexos desse repúdio à saúde mental e de tudo aquilo que a gente havia conseguido conduzir ao longo de quase 20 anos de Reforma Psiquiátrica. Fomos vendo as coisas desmoronarem…”, refletiu Noale Toja.


Reflexos de retrocessos


Uma pesquisa conduzida por Nelson Cruz, Renata Weber Gonçalves e Pedro Gabriel Delgado mostrou que, entre 2016 e 2019, foram criados 15 documentos normativos – são novas leis, resoluções, portarias, decretos e notas técnicas –, que seguem sendo criadas desde o governo de Michel Temer ao atual de Jair Bolsonaro. Dentre vários objetivos dessas medidas, essas ações basicamente pretendem voltar com a internação como método principal de tratamento de transtornos mentais. Os textos defendem o retorno de práticas como a eletroconvulsoterapia – que chegou a ser utilizada como método de tortura em manicômios – e desvirtuam a lógica de cuidados proporcionada pelos Centros de Atenção Psicossocial – os CAPS – no Brasil.


O que se defende por meio dessas leis é uma reorientação das políticas públicas de saúde mental a um modelo – lucrativo – que privilegia o enclausuramento de pessoas que vivem com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos. Os transtornos mentais estão voltando, dessa forma, a ser tratados por um modelo pautado pela exclusão das pessoas e pela extinção de seus direitos como cidadãos. Para os CAPS, uma das principais políticas de acesso à saúde desenvolvidas após a Reforma Psiquiátrica, onde se desenvolvem tratamentos e práticas humanizados, preveem menos recursos. Uma dessas alterações, publicada pela portaria 3.588 do Ministério da Saúde em 2017, institui o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas IV – o CAPSad IV –, que é um modelo de atenção emergencial e com característica de um pequeno hospital psiquiátrico, um retrocesso em forma de política pública.


Ao longo de um intenso período de rupturas de políticas progressistas, golpes e desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), uma série de medidas tentam formar uma nova política nacional de saúde mental (PNSM) que contraria a Constituição. São medidas que questionam o modelo psicossocial e de cuidado comunitário para incentivar o aumento do número de leitos de internação psiquiátrica, propostas que estão sendo apoiadas por entidades médicas, como a Associação Brasileira de Psiquiatria e pelo Conselho Federal de Medicina. Além disso, outro ponto sensível a esse desmonte é a política sobre drogas, que, agora, passa a ser tratada por uma abordagem punitivista e proibicionista por meio da implementação de comunidades terapêuticas, o que pode significar a porta de entrada para internações compulsórias.


Nesse contexto de retrocessos, a história da TV Pinel tem muito a ensinar, não pelo seu fim, mas por sua atuação e sua força para romper com os preconceitos, incluir pessoas e para mobilizar e transformar vidas contra as desigualdades sociais e as tentativas de enclausuramento de cidadãos. “A TV Pinel foi filha, não da psiquiatria, mas filha da cultura”, lembrou Ricardo Peret. “Foi filha também da Reforma Psiquiátrica e dos sonhos de seus usuários e de suas famílias desde a aprovação da lei antimanicomial. Ela cumpriu seu papel de intervenção cultural”, disse o psiquiatra. O que há por trás da luta antimanicomial, da Reforma Psiquiátrica e de iniciativas como a TV Pinel, como disse Peret, é a defesa de sonhos, da vida e da liberdade das pessoas e de uma sociedade sem manicômios.



O símbolo da TV Pinel: “por liberdade, democracia, saúde e arte”. (Fonte: Reprodução)

Elizabeth Costa, Maycon Santos, Jorge Romano, Bárbara Dias, Daisy Contocanis, Jaqueline Batista da Silva, Edivaldo Nabuco, Clovis Braga e Neiva de Fátima foram alguns dentre outros tantos usuários que tiveram suas vidas transformadas e seus sonhos eternizados pelas lentes da TV Pinel. Em nossa sociedade, esses sonhos não podem ter fim. A defesa da Reforma Psiquiátrica frente ao desmonte da saúde mental que se quer avançar pelo Brasil precisa que as conquistas alcançadas graças as lutas de tantas famílias, profissionais da saúde e pessoas que vivem com transtornos mentais sejam preservadas. Como dizia Jorge Romano, um dos usuários da Pinel, “não jogue fora a sua loucura, ela é real”.



 

Arthur Bomfim é estudante de jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atua e desenvolve seus estudos no campo da comunicação e saúde. É membro da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), foi estagiário na assessoria de comunicação da Academia Brasileira de Ciências (ABC), foi repórter da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (AdUFRJ) e é defensor do SUS que acolhe, cuida e salva.


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Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa:


1 comentário


arthurcgb
26 de abr. de 2022

🤗

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