Estudo da Nasa vem à tona dois anos depois, com dados distorcidos, e traz novamente a discussão sobre a responsabilidade no jornalismo científico
Por Geoffrey Scarmelote
Ficaria o Brasil inabitável até 2070? A depender de algumas reportagens publicadas em julho deste ano, sim.
Uma pesquisa publicada pela Science Advances em 2020 e um artigo divulgado pela Nasa, a agência espacial norte-americana, dois anos depois, foram usados à exaustão para o alarmismo. Mas ambos sequer citam a possibilidade sublinhada pelas manchetes e nas redes sociais.
O resultado veio após a distorção dos dados de um estudo feito por um pesquisador do Laboratório de Propulsão à Jato da Nasa no sul da Califórnia. O que Colin Raymond havia feito, de fato,foi analisar o aumento das temperaturas do bulbo úmido entre 1979 e 2017.
Segundo a própria Nasa, a temperatura de bulbo úmido é a mais baixa que pode ser resfriada por um objeto após a umidade evaporar por completo. Para calculá-la, levam-se em conta a temperatura ambiente e a umidade relativa do ar. Quanto mais elevada, mais difícil para o corpo se resfriar. O limite para o bulbo úmido seria 35°C, no qual o ser humano sua, mas não evapora o suor.
O estudo de Raymond mostra que esse teto já está na casa dos 31°C e que poderia chegar aos 35°C até 2070 em algumas regiões do planeta, inclusive o Brasil. Em entrevista à revista Planeta, Fábio Gonçalves, biometereologista da USP, diz que “inabitável é um termo muito forte. O artigo não fala isso. […] (A temperatura do bulbo úmido superior a 35ºC) Não é mortal para um ser humano saudável, mas é muito desconfortável”.
Porém, basta uma rápida pesquisa no Google pelos termos “Brasil 2070” e os primeiros resultados são reportagens cujos títulos afirmam que o país ficará inabitável até lá.
Segundo o artigo “The association between exaggeration in health related science news and academic press releases: retrospective observational study”, publicado pelo BMJ em 2014, exageros nas notícias estão, muitas vezes, diretamente ligados aos exageros dos press releases. E, para evitar as hipérboles, melhorar a precisão dos press releases sobre estudos pode ser a chave para reduzir notícias distorcidas relacionadas à saúde.
Meghie Rodrigues, jornalista freelancer de ciência e clima, reforça os cuidados com estudos e pesquisas. “O que tento fazer é não furtar o leitor das complexidades e incertezas de um tema”, diz. “Mostrar algo como resolvido quando não está é um baita desserviço.” Nessa mesma linha, a também jornalista Mirtes Bogéa chama a atenção para reportagens baseadas em estudos preliminares e são taxativas com manchetes como “café dá câncer” ou “café cura câncer”.
Números e divergências de interpretação
Em 2016, o blog Gene Repórter publicou o texto “Zika e microcefalia: um olhar crítico ao olhar crítico”, que analisa a conferência de dados oficiais de microcefalia com os comparando o boletim publicado pelo Ministério da Saúde com os dados das secretarias estaduais de saúde feita tanto pela Agência Lupa quanto pela Globonews.
Houve uma diferença entre os dois veículos, uma vez que a Agência Lupa - justamente conhecida por seus trabalhos de checagem - optou por englobar todos os casos da doença, enquanto o ministério da Saúde se referia a casos que apresentassem alterações típicas - e a Globonews seguiu o padrão contagem da pasta.
O blog elencou uma série de divergências apontadas pela Lupa e que, segundo os autores, seriam mínimas, caso a agência tivesse se atentado às orientações do ministério.
Nas redações
As opções e orientações editoriais também são pedras no caminho da correção da divulgação de pesquisa. A jornalista e socióloga Monique Oliveira, que hoje atua como pesquisadora da Unicamp, recorda-se de um episódio enquanto trabalhou em um veículo de grande circulação nacional. “Recebi a seguinte pauta: o diretor de redação estava em um jantar e ficou sabendo que cientistas brasileiros encontraram a cura do câncer”, relembra. “Pediram que eu apurasse.” André Julião, contemporâneo de Monique neste mesmo veículo, também rememora uma sugestão: “meu filho criança quer fazer musculação. Faz uma matéria dizendo que faz mal”. Como resumido nas próprias palavras de Monique, são “anedotas” cotidianas nas redações.
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